INTRODUÇÃO

Quem hoje conhece o poeta Olegário Mariano?
O Brasil teve e tem grandes poetas, mas poucos gozaram da popularidade que teve Olegário Mariano. E não se trata de um autor perdido num tempo distante; faz pouco mais de 110 anos que ele nasceu e 45, que ele faleceu.
No entanto, apesar da grande popularidade gozada em vida, que, hoje, conhece o poeta Olegário Mariano?
Olegário Mariano Carneiro da Cunha nasceu no Recife, Estado de Pernambuco, no dia 24 de março de 1889.
Ainda adolescente, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde seu pai ganhara a concessão de um cartório do então presidente Rodrigues Alves. O cartório do pai era freqüentado por diversas personalidades políticas e intelectuais da época e, devido a isso, Olegário Mariano passou a circular pela roda literária de Olavo Bilac, Coelho Neto, Martins Fontes e outros.
Quando estudava no colégio Pio-Americano, o poeta Alberto de Oliveira foi seu professor, orientando-o e estimulando-o para a poesia.
Em 1911, aos 22 anos, ano de seu casamento, publicou, por conta própria, seu primeiro livro de poesias: Ângelus.
Além de poeta, ao longo de sua vida, Olegário Mariano exerceu diversos cargos administrativos e políticos.
No dia 23 de dezembro de 1926, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, tomando posse da cadeira n.o 21 em 20 de abril de 1927.
Em 1938, a revista FON-FON promoveu um concurso no qual Olegário Mariano foi eleito, por intelectuais de todo o Brasil, “Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Antes dele, o título havia pertencido ao amigo Olavo Bilac. Com a morte de Bilac, houve nova eleição e o título passou a Alberto de Oliveira, seu ex-professor. Após a morte de Alberto de Oliveira, elegeu-se Olegário Mariano.
O poeta continuou a viver no Rio de Janeiro até 28 de novembro de 1958, quando faleceu.
Por que Olegário Mariano foi tão popular em vida?
Sua popularidade deveu-se às características de sua poesia. Não chegou a seguir nenhuma escola estética com devoção, declarando-se um “lírico incorrigível”.
Sua poesia é simples, de fácil assimilação, romântica e melancólica, tratando de temas do cotidiano, sustentado por um vocabulário singelo.
Um de seus temas prediletos foi a “cigarra” e, por essa razão, passou a ser conhecido também como o “Poeta das Cigarras”.
Para alguns críticos, ao cantar em versos a presença da terra, sua poesia atingiu o ponto mais alto em qualidade.
Nesta seleção que apresentamos a seguir, podemos apreciar poemas escritos ao longo de toda a carreira literária de Olegário Mariano. Seus temas preferidos aí estão, como a cigarra, o campo, a vida simples, as festas populares, as brincadeiras de rua, os animais de estimação, o Natal.
O vocabulário do poeta, que no passado era simples — sem ser pobre —, pode, ao jovem leitor de hoje, apresentar alguma dificuldade. Por essa razão, algumas palavras são remetidas para notas de rodapé
[1], que procuram esclarecer o seu significado. Talvez não haja necessidade de se recorrer a essas notas a todo instante, pois a limpidez das idéias do poeta situará a palavra dentro de um contexto que a esclarecerá facilmente.
A poesia de Olegário Mariano continua a encantar e a emocionar como antes e, com certeza, tocará o coração de todos os que a lerem — descobrindo este poeta aqueles que estão em contato com ele pela primeira vez, ou revivendo emoções, os que já o leram.
Esta é apenas uma pequena seleção dos poemas de Olegário Mariano. É um simples convite ao conhecimento de uma extensa obra que precisa ser resgatada, para se fazer justiça ao poeta e para extasiar os leitores.



Nelson Ricardo Cândido dos Santos
2003

[1] OBSERVAÇÃO: as notas procuram apenas auxiliar na compreensão dos textos, mas o significado das palavras vai além do mencionado, mesmo porque, muitas vezes, elas aparecem em sentido figurado. Somente a leitura do texto no qual a palavra se encontra permite sua adequada compreensão.

NOITES DE DEZEMBRO

Sinos cantando... Noites de Dezembro.
Dlin... Dlon... É a procissão que vai passando...
Recordar é sofrer! Quando me lembro
Antes de me lembrar, já estou chorando.

A luz dos combustores
[1] fumarentos,
Numa piedosa e mística atitude,
Levanta-se, nos seus esbatimentos
[2],
A Igreja da Senhora da Saúde.

Lá dentro, no interior, o triste choro
Do órgão velho soltando uns sons antigos.
E na porta da entrada ouve-se o coro
Dos que pedem cantando, dos mendigos.

E o luar bate cá fora nas calçadas,
Um luar de trovadores e poetas...
As estradas estendem-se... as estradas
Na precisão das suas linhas retas.

As árvores do pátio, em simetria,
Velhas, fingindo eterna mocidade,
Dão sombra a quem procura a sombra fria
E a mim que vivo longe, — dão saudade.

Dezembro. Mês de festas... A humildade
Da gente pobre que se agita em bando...
Noites da minha terra!... Que saudade!...
Dlin... Dlon... É a procissão que vai passando...



(de Ângelus, 1911)

[1] COMBUSTOR: poste para iluminação pública.
[2] ESBATER: estar com cores suavizadas.

DO MEU TEMPO...

Quando eu era menino e tinha cheia
A alma de sonhos bons e, fugidio
[1],
Como a abelha que voa da colméia,
Andava a errar no canavial bravio;

Quando em noites de junho o luar macio
Punha um lençol de rendas sobre a areia,
Tiritava
[2] de medo ouvindo o pio
Da coruja mais lúgubre
[3] da aldeia.

Feliz! Bendita essa primeira idade!
Andava como quem anda sonhando
De olhos abertos, com a felicidade.

Dormia tarde e enquanto dormia,
Mamãe rezava o padre-nosso e quando
Me mandava rezar eu não sabia.


(de Sonetos, 1912)

[1] FUGIDIO: acostumado a fugir.
[2] TIRITAR: tremer.
[3] LÚGUBRE: que dá medo.

DEZEMBRO

Dezembro é um mês religioso. Sinto
Todas as sensações que ele me empresta.
Do livro do Passado quase extinto
É um pouco de emoção que ainda me resta.

Evoca tempo idos... Desenterra
Velhas lembranças comovidamente:
Dezembro fala ao coração da Terra
E a Terra fala ao coração da gente.

Rumor
[1] lento de sinos! Por que rolas
Do alto e vais murmurando pelos valos
[2]?
Não perturbes a toada das violas
Nem o canto metálico dos galos!

Dezembro é um velho cofre de memórias,
Cheio de fantasias e de afetos.
Ai como bolem
[3] na alma as tais histórias
Que as avozinhas contam para os netos!

Hoje que faz luar e a noite é bela,
Alongando os meus olhos à distância,
Deixo-me aqui ficar nesta janela
Enquanto voa o pensamento à infância...

Há vozes, alaridos
[4], algazarras,
Expressões de alegria, olhos de espanto:
Passam as raparigas
[5]... Falam tanto,
Que parecem um bando de cigarras.

Olho absorto... A paisagem se assemelha
Àquela que eu deixei de olhos molhados...
Entre árvores, sonhava a Casa Velha,
A Vivenda dos meus antepassados.

E ao lado a igreja humilde e luzidia
[6],
De adro
[7] deserto e de portais franzinos[8],
Que ao pôr do sol, no alto da torre, abria
As gargantas de cobre dos três sinos.

Ah Dezembro! Teu hálito é tão doce
Que o sinto como um beijo em minha face,
Uma bênção que cai como se fosse
Uma existência que se renovasse.

Para mim que ando cousas relembrando
Evocas
[9] um velhinho... O luar desponta,
Há vozes... E ele passa murmurando
Lendas... Que lindas lendas ele conta.



(de Evangelho da Sombra e do Silêncio, 1912)

[1] RUMOR: ruído.
[2] VALO: campo.
[3] BOLIR: mexer.
[4] ALARIDO: gritaria.
[5] RAPARIGA: moça
[6] LUZIDIA: brilhante
[7] ADRO: terreno em frente e/ou em volta da Igreja.
[8] FRANZINO: pequeno.
[9] EVOCAR: lembrar.

VERSOS AO MEU CÃO

Meu cão chama-se Floc. Entre os mais belos,
É talvez o mais lindo que há no mundo.
É um cão meditativo
[1] e silencioso.
Nos seus olhos redondos e amarelos
Há qualquer coisa de saudoso
E de profundo.

É longo e magro. Tem o andar lento e pausado
De um boêmio
[2] sonhador,
Que vive a recordar com o seu Passado,
A Glória, a Vida, a Mocidade, o Amor...

Foge dos outros cães; anda constantemente
Só, porque ama o silêncio do abandono.
Passa os dias deitado molemente
Aos pés da escrivaninha do seu dono.

Tem carícias no olhar de água parada...
Outro dia, no escuro da janela,
Vi que olhava para ele, enamorada,
Maravilhadamente uma cadela.

Nasceu nalgum país de bruma
[3] fria,
Num castelo escondido entre a espessura,
Porque ele tem a polidez
[4] da fidalguia[5]
E o sangue azul dos cães de raça pura.

É um cão de vida original e quieta;
Tão diferente desses cães de rua!
Meio filósofo e poeta
Amando a solidão e amando a lua.

Seus olhos grandes, mesmo que não falem,
Traduzem, num profundo desalento
[6],
Toda a sua romântica afeição:

Há muitos homens por aí que nada valem
Porque não têm o sentimento
Nem a sinceridade do meu cão.



(de Evangelho da Sombra e do Silêncio, 1912)
[1] MEDITAR: pensar.
[2] BOÊMIO: despreocupado com o futuro.
[3] BRUMA: nevoeiro, neblina, cerração.
[4] POLIDEZ: boa educação.
[5] FIDALGUIA: nobreza; família ilustre.
[6] DESALENTO: desânimo.

A FONTE

Que melodia era aquela?
Dia e noite, noite e dia,
Sempre aquela melodia
A me entrar pela janela.

Sem saber o que fazia,
Fui seguindo o canto dela.
Era uma fonte singela
Que cantava... que corria...

Feliz quem na sua mágoa
Tem como a fonte sonora
Cantigas no choro da água...

Ai contraste singular!
Pode a alma cantar... embora!
Que a fonte chora é no olhar.



(de Água Corrente, 1918)

A FAZENDA SANTA CRUZ

Por entre a folhagem verde
Que pelas brenhas
[1] se perde,
No coração da Fazenda
Dorme a casa de vivenda.

Um pátio largo defronte,
Ao fundo azul — o horizonte
A crepitar, esbraseado
[2],
Num crepúsculo
[3] doirado.

A mata pesada, imensa,
Parece que sonha ou pensa...
Catedral verde que encerra
O culto simples da terra.

Abre-se um rio de prata
E, num fragor
[4] de cascata,
Borbulha de duna em duna...
É o rio Saracuruna.

À tona
[5] um enxame treme,
Se equilibra e vibra e freme
[6],
E às vezes se desmorona
Como uma coluna, à tona...

Umas partem, outras voltam,
As asas doiradas soltam
Em nervosas tarantelas
[7],
Brancas, verdes, amarelas.

Bate a porteira da entrada.
Sonolenta entra a boiada:
— Pintado! Moreno! Audaz!
Anda à frente, meu rapaz!

Um deles, o mais tristonho,
Que é pesado como um sonho,
Olhando o campo tão lindo,
Vai passando e vai mugindo...

Entre árvores surge a lua,
Branca e inteiramente nua,
Mostrando em suaves coleios
[8],
O tronco, os braços, os seios...

Sobe e do alto descampado
[9]
Espalha um véu de noivado
Com cintilações
[10] estranhas
Pela encosta das montanhas...

Depois desce ao rio e o rio
Que roda sereno e frio,
Se enrosca num frenesi
[11]:
— Beija-me as águas, Iaci!

O Saracuruna sonha...
Na marcha lenta e tristonha,
O rio lembra um vivente
[12]
Porque chora e porque sente.

Vai sinuoso... Entra a devesa
[13]
Levando na correnteza
Troncos, arbustos e ninhos
Que encontrou pelos caminhos.

E perde-se longe... agora
Nem sinal da água que chora...
Os rios são, com certeza,
O pranto
[14] da natureza.


(de Água Corrente, 1918)
[1] BRENHA: matagal, mata espessa.
[2] ESBRASEADO: da cor da brasa.
[3] CREPÚSCULO: instante do nascer e do pôr do sol.
[4] FRAGOR: ruído muito forte.
[5] TONA: superfície.
[6] FREMER: tremer.
[7] TARANTELA: tipo de dança italiana.
[8] COLEIO: movimento sinuoso, aos ziguezagues, como o de uma serpente, de uma cobra.
[9] DESCAMPADO: terreno sem nada, desabitado.
[10] CINTILAÇÃO: brilho.
[11] FRENESI: entusiasmo, agitação.
[12] VIVENTE: que vive; criatura com vida.
[13] DEVESA: limite do terreno.
[14] PRANTO: choro, lágrimas.