Mas como me comovia
Aquele pintinho cego
Que eu criava e não me via.
O meu cuidado primeiro,
Quando cansado chegava,
Era indagar do caseiro
Meu ceguinho como estava.
E ele que vivia a sós,
Num momento aparecia.
Certamente conhecia
O timbre[1] da minha voz.
Vinha vinda e tateando
Pela grama do jardim.
Abaixava-se piando
A esperar com alegria
A festa que eu lhe fazia
Quando o tinha junto a mim.
Uma vez... (se bem me lembro
Era o mês de dezembro)
Pus a criadagem tonta...
Ninguém dele dava conta.
Fiquei louco, furibundo[2],
Pus em campo todo mundo,
Gente corria assustada
Pelo jardim, pela estrada,
Até que o acharam com frio,
Longe, num campo baldio,
Tonto, sem poder voltar.
O seu caminho de volta
Era escuro e misterioso
Como uma noite sem luar.
Então resolvi prende-lo:
Fiz-lhe uma casa de palha
E a todo instante ia vê-lo.
Desse modo procurava
Dar-lhe paciência e esperança
Enquanto ele era criança,
Para aguardar o futuro
Mais escuro que o esperava.
Mas o destino, na trama[3]
Como a aranha o prendeu.
O caseiro resolveu
Soltá-lo um pouco na grama...
E ele desapareceu.
Quando no fim de semana
Voltei à minha choupana[4]...
Vinha feliz! Mal sabia
Que ele não mais existia.
E me acreditem, não nego,
Chorei com pena e saudade
Daquele pintinho cego
Que não via a claridade
Do sol que ilumina o dia,
Que dá vida a todos nós,
E entanto me conhecia
E era feliz quando ouvia
O timbre da minha voz.
(In: Poesia Brasileira para a Infância)
[1] TIMBRE: som.
[2] FURIBUNDO: furioso; com raiva; com ódio.
[3] TRAMA: teia.
[4] CHOUPANA: cabana, casa simples.