DEZEMBRO

Dezembro é um mês religioso. Sinto
Todas as sensações que ele me empresta.
Do livro do Passado quase extinto
É um pouco de emoção que ainda me resta.

Evoca tempo idos... Desenterra
Velhas lembranças comovidamente:
Dezembro fala ao coração da Terra
E a Terra fala ao coração da gente.

Rumor
[1] lento de sinos! Por que rolas
Do alto e vais murmurando pelos valos
[2]?
Não perturbes a toada das violas
Nem o canto metálico dos galos!

Dezembro é um velho cofre de memórias,
Cheio de fantasias e de afetos.
Ai como bolem
[3] na alma as tais histórias
Que as avozinhas contam para os netos!

Hoje que faz luar e a noite é bela,
Alongando os meus olhos à distância,
Deixo-me aqui ficar nesta janela
Enquanto voa o pensamento à infância...

Há vozes, alaridos
[4], algazarras,
Expressões de alegria, olhos de espanto:
Passam as raparigas
[5]... Falam tanto,
Que parecem um bando de cigarras.

Olho absorto... A paisagem se assemelha
Àquela que eu deixei de olhos molhados...
Entre árvores, sonhava a Casa Velha,
A Vivenda dos meus antepassados.

E ao lado a igreja humilde e luzidia
[6],
De adro
[7] deserto e de portais franzinos[8],
Que ao pôr do sol, no alto da torre, abria
As gargantas de cobre dos três sinos.

Ah Dezembro! Teu hálito é tão doce
Que o sinto como um beijo em minha face,
Uma bênção que cai como se fosse
Uma existência que se renovasse.

Para mim que ando cousas relembrando
Evocas
[9] um velhinho... O luar desponta,
Há vozes... E ele passa murmurando
Lendas... Que lindas lendas ele conta.



(de Evangelho da Sombra e do Silêncio, 1912)

[1] RUMOR: ruído.
[2] VALO: campo.
[3] BOLIR: mexer.
[4] ALARIDO: gritaria.
[5] RAPARIGA: moça
[6] LUZIDIA: brilhante
[7] ADRO: terreno em frente e/ou em volta da Igreja.
[8] FRANZINO: pequeno.
[9] EVOCAR: lembrar.