A CIGARRA E A FORMIGA

Dona Formiga, nesta redondeza
Rústica
[1] e solitária,
É tida
Como três vezes milionária,
Possuidora de esplêndida riqueza
Que levou a juntar durante toda a vida.

Acostumou-se desde criança à luta,
Ao sol de fogo e à aventura brava.
Vivia a trabalhar heróica e resoluta
[2]
Armazenando tudo o que ganhava.

Hoje está bem, mas é geralmente malquista
[3].
Faltam-lhe uns poucos sentimentos nobres.
É em demasia egoísta
E odeia as raparigas que são pobres.

Dona Cigarra, por exemplo, alheia
[4]
A tudo, vive como pode, à toa...
Canta os dias a fio...
Tem a garganta quase sempre cheia
E quase sempre o estômago vazio...
Entretanto, coitada! É humilde e boa.


Chega a passar misérias, mas que importa?
Só quer que a sua vida não se acabe.
Anda de porta em porta...
Se não trabalha, é só porque não sabe.

Entregou-se de vez à vida airada
[5] e quando
Se lhe fala em riqueza,
Ela responde, trêfega
[6], cantando
Que o seu grande tesouro é a Natureza.

Ora, um dia... (chegara o inverno) a pobre
Foi ter à casa verde da vizinha
E apelou humilhada,
Para o seu grande sentimento nobre:
— “Mate-me a fome cruel que me espezinha
[7],
quero pão e mais nada.”

Mas a irônica amiga,
Impassível
[8], britânica[9], solene[10],
Falou assim:
— “Sou a mesma Formiga
De que falava o velho La Fontaine,
Nada esperes de mim. “

— “Tu, que fizeste na estação ardente
Quando me extenuava
[11], estrada fora?”
— “Eu cantava” — responde-lhe a inocente.
— “Ah! Cantavas? Pois canta e dança agora!”

Deus que ouvira, entretanto,
Sentenciou da alta abóbada
[12] vazia:
Canta, Cigarra, canta que o teu canto
Será teu pão de cada dia.

Esta leda bizarra
[13]
Que o tempo não consome,
Vem aos poetas provar
Que a Cigarra
Nunca mais morreu de fome...
Morre agora é de cantar.



(de Últimas Cigarras, 1920)

[1] RÚSTICO: simples.
[2] RESOLUTO: decidido.
[3] MALQUISTO: a quem não se quer bem; por quem se tem antipatia.
[4] ALHEIO: que não se preocupa com o assunto de que se trata.
[5] AIRADO: vadio, sem responsabilidade.
[6] TRÊFEGO: com graça e manha.
[7] ESPEZINHAR: oprimir, maltratar.
[8] IMPASSÍVEL: que parece não ter sentimento.
[9] BRITÂNICO: calma em que não se demonstram sentimentos.
[10] SOLENE: tratamento formal, sem intimidade.
[11] EXTENUAR: perder as forças, cansar.
[12] ABÓBADA: teto em forma de arco; o céu é a abóbada celeste.
[13] BIZARRO: primoroso, encantador.